segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Combate à improbidade: "Prefeitos erram por ignorância, mais do que por má-fé"

Por Jomar Martins

Seis promotores de Justiça e cerca de 500 policiais civis participaram, em julho deste ano, de uma megaoperação em 10 municípios do Rio Grande do Sul, cumprindo 43 mandados de busca e apreensão. Foi uma ação concertada e dura contra agentes públicos acusados de fraudar licitações em pelo menos oito municípios: Alvorada, Cachoeirinha, Canela, Osório, Parobé, São Sebastião do Caí, Tramandaí e Viamão.

A investigação começou a ser desenhada a partir da denúncia de uma testemunha que procurou o pequeno e quase desconhecido Ministério Público de Contas. O procurador-geral da instituição, Geraldo da Camino, ouviu o informante e começou a se articular com o Tribunal de Contas do Estado, com o Ministério Público estadual e com a Polícia Civil. Nascia a Operação Cartola, nome do famoso sambista que compôs ‘Alvorada’. A alusão visa mostrar que o município da Grande Porto Alegre era o centro da fraude.

A acusação era que uma empresa de publicidade era favorecida em licitações. Ela terceirizava os serviços licitados, subcontratando empresas fornecedoras, para superfaturar os contratos. Empresários e servidores públicos foram acusados de participar da fraude, inclusive com o pagamento de propina.

O episódio serviu para mostrar à sociedade gaúcha o Ministério Público de Contas, que tutela os direitos da sociedade junto ao Tribunal de Contas do Estado. Primo pobre entre os MPs — já que não tem sede, móveis, servidores e conta com uma quadro reduzidíssimo de procuradores —, a instituição está alojada no prédio-sede do TCE, em Porto Alegre.

“A maior parte dos administradores municipais erra mais por desconhecimento do que por má-fé”, de acordo com Geraldo da Camino, procurador-geral do Ministério Público de Contas do Rio Grande do Sul. Segundo ele, quem erra por desconhecimento sempre terá o apoio do Ministério Público e também do Tribunal de Contas. “Quanto aos que agem de má-fé, não haverá qualquer tipo de transigência”, acrescenta.

Em entrevista à Consultor Jurídico, Camino diz que a Lei de Improbidade Administrativa é boa e tem instrumentos suficientes para punir quem lesa a administração pública. Mas defende a aplicação de multas mais pesadas pelo Tribunal de Contas da União nos casos de crimes licitatórios. A punição no valor de R$ 1,5 mil não tem efeito pedagógico, afirma.

Além do que, o procurador observa que a cobrança da multa costuma ser difícil porque existem muitos recursos possíveis. “Ao povo, não basta apenas a punição penal; o erário tem de ser reposto”, ensina e propõe o uso de medidas cautelares no curso da investigação, como arresto e sequestro de bens para garantir a execução.

Nesta entrevista, Geraldo da Camino explica, de forma didática, como nasceu e de que forma funciona a instituição que dirige. Este porto-alegrense, de 48 anos, ingressou no MPC como adjunto de procurador, em 14 de setembro de 2000, por concurso público. Antes, militou na advocacia entre 1996 e 1997. No período de 1997 a 2000, também por concurso público, foi procurador federal do INSS, tendo exercido a função de procurador regional em Rio Grande. Em abril de 2008, tornou-se procurador-geral.

Leia a entrevista:

ConJur — Quando e como surgiu Ministério Público de Contas?
Geraldo da Camino
— O Ministério Público de Contas é uma instituição mais que secular, pois nasce com o Tribunal de Contas, em 1890, em decorrência de um projeto de Ruy Barbosa. Quando instalado, em 1893, já havia previsão que um de seus membros seria o representante do Ministério Público. No Rio Grande do Sul, o Tribunal de Contas foi instituído em 1935, pelo general Flores da Cunha. A norma que o instituiu já dispunha que haveria um procurador fazendo as vezes de Ministério Público perante o Tribunal de Contas do Estado. A partir da Constituição de 1988, este Ministério Público junto aos Tribunais de Contas, Ministério Público de Contas, ganhou assento constitucional com o artigo 130. Desde então, estamos num processo de consolidação. Hoje, podemos dizer que em todas as unidades da Federação há um Ministério Público de Contas. O MPC funciona à parte do Ministério Público. É uma carreira específica, com um concurso específico. Não há vinculação nem subordinação perante o Tribunal de Contas do Estado.

ConJur — A instituição existe de forma autônoma, como outras do sistema judicial?
Geraldo da Camino
— Estamos numa jornada no rumo da autonomia. Já há uma proposta de emenda à Constituição para conferir autonomia financeira e orçamentária aos Ministérios Públicos de Contas. No RS, também há um movimento neste sentido. Em breve, encaminharemos projeto à Assembleia Legislativa alcançar esta autonomia.

ConJur — Quais são as suas atribuições específicas?
Geraldo da Camino
— Fiscal da lei perante o Tribunal de Contas. O MPC pode opinar em todos os processos da competência do Tribunal, cuja função é exercer o controle externo da administração pública. No RS, o TCE tem jurisdição sobre todos os órgãos da administração estadual direta e indireta e sobre todos os municípios. Não há sessão do tribunal sem a presença do MPC. E, em todos os processos, damos o nosso parecer. Mas o MPC não tem função apenas reativa, de opinar nos processos quando provocado. O MPC exerce, hoje, uma função proativa, que vem ocorrendo desde a gestão do meu antecessor, conselheiro Cezar Miola, hoje presidindo o TCE. Esta função é exercida com a integração dos outros órgãos de controle. Nós temos Atos de Cooperação firmados com o Ministério Público do estado, com o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, com o Ministério Público Federal, com o Ministério Público do Trabalho e com a Polícia Federal. Nos últimos anos, desenvolvemos uma parceria com a Polícia Civil. Então, por meio desta integração, movimentamos a jurisdição de contas, principalmente através de representações dirigidas ao tribunal.

ConJur — Na posse recente do conselheiro Cezar Miola, na presidência do TCE, foi dado grande relevo ao combate à corrupção. O que o MPC está fazendo para se engajar neste esforço?
Geraldo da Camino
— A tônica do combate à corrupção deve ser a integração dos órgãos de controle. O crime é organizado. Então, nós devemos atuar minimamente organizados, para somarmos esforços e sinergia. O intercâmbio de informações e a atuação conjunta nos darão a efetividade da ação do controle. Em outros episódios, pudemos comprovar a eficiência desta integração. Em 2006, o MPC, junto com a Polícia Civil, a Delegacia Fazendária e o Ministério Público estadual (Promotoria do Patrimônio), investigou uma suposta fraude na licitação do serviço de coleta de lixo em Porto Alegre, caso envolvendo R$ 400 milhões. Em 2007, participamos da Operação Rodin [lê-se Rodan, uma homenagem a Auguste Rodin, célebre escultor francês que concebeu e esculpiu a famosa estátua ‘‘O Pensador’’], desencadeada pela Polícia Federal, Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual, Ministério Público de Contas e Receita Federal. Neste caso, o primeiro órgão a investigar as relações do Detran com a fundações foi o MPC. Em 2010, também participamos da Operação Mercari, que apurou fraudes nas ações de marketing do Banrisul. Aliás, foi a partir de uma testemunha ouvida por nós, que as investigações tiveram início.

ConJur — Quantos procuradores atuam na instituição?
Geraldo da Camino
— O MPC é constituído por quatro membros. Eu tenho três colegas procuradores-adjuntos, que são Daniela Toniazzo, Fernanda Ismael e Ângelo Borghetti.

ConJur — Os quadros e a estrutura permitem para fazer um bom trabalho?
Geraldo da Camino
— Hoje,só temos quatro procuradores e alguns servidores do Tribunal de Contas, colocados a nossa disposição. Por isso, conforme comentei, nós estamos buscando a necessária autonomia. Até para não dependermos das boas relações entre o procurador-geral e o presidente do tribunal, no atendimento das nossas atividades. Nem sempre esta situação (boa vontade) se configura, e pode levar à inviabilidade das atribuições do Ministério Público de Contas.

ConJur — Falta um projeto para criar a instituição?
Geraldo Da Camino —
Há um projeto em confecção, e vamos encaminhá-lo proximamente à Assembleia Legislativa. Em futuro próximo, espero que tenhamos também um quadro próprio de serviços auxiliares, além de uma majoração no quadro de procuradores, para fazer frente à crescente demanda. Afinal, quanto mais a instituição participa de ações, com o aumento da visibilidade, mais demandas atrai.

ConJur — O MPC está na mesma situação da Defensoria, então?
Geraldo da Camino
— Não, a Defensoria já conseguiu colocar na Constituição a sua autonomia. Na verdade, avançou em relação ao Ministério Público de Contas. Através da Associação Nacional do Ministério Público de Contas e do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Contas, o qual presido, nós estamos tomando uma série de medidas para modificar esta realidade e afirmar a instituição no rumo da autonomia.

ConJur — O MP estadual está trabalhando muito na linha de conciliação, para ajustar condutas e evitar a judicialização, que é onerosa para todas as partes. O MPC trabalha com esta lógica?
Geraldo da Camino
— Sim, e já há algum tempo. Nas ações em parceria com o MP estadual, buscamos sempre a tutela extrajudicial. E não só pelo custo de mover a máquina judicial quanto a jurisdição de contas, mas pela efetividade que se obtém no momento em que o órgão fiscalizado se dispõe a corrigir uma conduta administrativa. Temos aí o exemplo da força-tarefa do Daer (denúncias de corrupção e desvios no Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem, órgão do Governo do Estado). Pela primeira vez na história, o Estado (representando o Daer) firmará um Termo de Ajustamento de Conduta com os Ministérios Públicos. Então, com a conduta administrativa ajustada, talvez tenhamos a oportunidade de corrigir erros históricos que, tantas vezes em juízo, não obtivemos êxito. Então, a via da Recomendação, do Termo de Ajustamento de Conduta, dever ser esgotada.

ConJur –—Afora os casos de corrupção, o senhor não acha que a grande parte dos erros e das violações à lei se deve à falta de preparo dos gestores, desconhecimento mesmo?
Geraldo da Camino
— Sem dúvidas, a maior parte dos problemas se deve à falta de preparo. Em conversa com o presidente da Federação dos Municípios do Estado [Famurs], Mariovane Weiss, comentávamos justamente isso: a maioria dos administradores municipais erra mais por desconhecimento do que por má-fé. Aqueles que erram por desconhecimento terão sempre o apoio do Ministério Público e do Tribunal de Contas para sua capacitação. Quanto aos que agem de má-fé, não haverá qualquer tipo de transigência.

ConJur — O nível de corrupção no RS é alto, em comparação com outras unidades da Federação? Qual a sua percepção?
Geraldo da Camino
— Bem, a Operação Rodin acabou com o mito de que o gaúcho estava virtualmente imune à corrupção. A corrupção é um fenômeno humano e vai existir sempre. Não é algo privativo de determinada categoria — agentes públicos ou políticos. A corrupção pode estar presente no motorista de táxi que pega o caminho mais longo, o cidadão que não devolve o troco a mais e assim por diante. Agora, o sentimento que tenho é que a estrutura político-administrativa do Estado do Rio Grande do Sul e dos seus municípios ainda é mais avançada em relação ao restante do país. Talvez os órgãos de controle venham dando uma resposta mais efetiva, os casos tenham aparecido mais. Quero crer que o Rio Grande do Sul ainda está numa situação melhor em relação a outros estados.

ConJur — A lei é rigorosa e pune, de fato, os agentes públicos infratores? Tem que ser mais dura?
Geraldo da Camino
— Os instrumentos legais são suficientes. A Lei de Improbidade Administrativa é um instrumento valioso para o Ministério Público estadual, tem penas severas. Também os crimes contra a administração pública estão razoavelmente bem apenados. Talvez os crimes licitatórios devessem ter penas mais duras do que têm. No âmbito do Tribunal de Contas, há um projeto para corrigir isso. Por outro lado, as multas aplicadas pelo Tribunal são de valor irrisório. Multas de R$ 1.500 praticamente não têm efeito didático ou punitivo algum. Uma medida, tomada pelo presidente Cezar Miola, será encaminhar aos seus pares uma proposta de majoração destes valores. E há também algumas medidas associadas que reputo importantes para a efetividade do controle, como a garantia da devolução ao erário. Ao povo, não basta apenas a punição penal; o erário tem de ser reposto. Mas esbarramos na dificuldade de execução, uma vez que a própria processualística brasileira comporta muitos recursos e dificulta o retorno dos valores subtraídos dos cofres públicos. Portanto, acho que as medidas cautelares são muito importantes no curso da investigação. Isto foi adotado agora na Operação Cartola, bem como na Operação Mercari e na Operação Rodin. Já deve haver o levantamento de bens dos possíveis indiciados, a fim de se obter medidas de arresto e sequestro, para garantir a futura execução, para ressarcimento do erário.

ConJur — Apesar da lei dura e dos controles, a verdade é que poucos agentes públicos são punidos, considerando o volume de casos de corrupção. Há uma sensação de impunidade.
Geraldo da Camino
— Eu diria que esta percepção, por um lado, tem razão de ser. De fato, às vezes, não se obtém a condenação que se buscava no início da investigação. Por outro lado, ela (sensação de impunidade) decorre, noutras vezes, da falta de conhecimento do processo em si — no caso concreto. Quando se noticia uma prisão, ao deflagrar uma operação, estamos na fase do inquérito policial. Depois do inquérito, haverá ou não o indiciamento, resultará ou não numa denúncia do Ministério Público. Posteriormente, se obterá ou não, uma condenação. Isso leva bastante tempo. Então, o fato de não se ter notícias de casos recentes — Operação Rodin, por exemplo, que faz quatro anos — não quer dizer que não tenha ocorrido nada. Ora, os processos estão tramitando. É o que referi antes: a processualística brasileira, por comportar esta dilação, que acaba produzindo uma sensação de impunidade — que não é necessariamente real. Ou seja, a Justiça acaba retardando-se muito por causa do cipoal de recursos. O caso do jornalista Pimenta Neves, que assassinou a ex-namorada, em São Paulo, demonstra bem isso. Pessoas que têm recursos, condições de contratar advogados competentes, podem, não digo indefinidamente, mas por muitos anos, arrastar o processo. Então, acredito que poderemos combater a impunidade apostando nestas ações integradas de controle.

Jomar Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.

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