O que é a pedofilia? Quais
os tratamentos e as experiências internacionais? Especialistas comentam sobre
práticas possíveis para evitar que um pedófilo se torne um abusador.
Por
Tatiana Coelho, G1
Comumente, diz-se que
"pedofilia é crime", mas não é exatamente assim. Pedofilia é uma
doença classificada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) desde os anos 60.
Segundo o Código Penal brasileiro, o que é crime é o abuso sexual de menores de
14 anos e consumo e distribuição de pornografia infantil.
A discussão sobre pedofilia
é tabu em boa parte do mundo, mas especialistas lutam para que o diagnóstico e
o tratamento do pedófilo sejam mais amplamente divulgados. A razão é simples: o
tratamento pode evitar que pedófilos se tornem abusadores e criminosos e, logo,
que haja menos vítimas.
"As pessoas pensam que
quando falamos que transtorno pedofílico é uma doença, estamos protegendo o
indivíduo pedófilo em detrimento da vítima. É proteger a vítima e averiguar se
aquele que molestou a criança de fato é ou não portador de pedofilia. A grande
maioria dos molestadores de criança não é portadora deste problema", diz
Danilo Baltieri, médico-psiquiatra da Faculdade de Medicina do ABC e responsável
pelo Ambulatório ABCSex, que trata pedófilos.
Baltieri também explica que
ao redor do mundo, não são muitos os especialistas na área. Doenças crônicas
como depressão, diabetes e hipertensão ganham mais atenção da medicina tamanho
o tabu.
"Existe uma dificuldade
do profissional da saúde em enfrentar este tema, que não é fácil. Existe um
preconceito público enorme, o que é totalmente compreensível, e o assunto é
complexo mesmo. É difícil", explica.
"Os pacientes com o
chamado transtorno pedofílico em geral necessitam de abordagens
interdisciplinares. Não só do médico. Ele precisa do psicólogo, do assistente
social, é necessário o apoio da família", completa Baltieri.
O
que é pedofilia?
A pedofilia é um distúrbio
parafílico, ou seja, é um comportamento sexual que não segue a normalidade,
como a necrofilia (o desejo de ter relações sexuais com cadáveres) ou a
zoofilia (o desejo sexual por animais). Na pedofilia, a pessoa tem interesse
intenso e persistente por crianças.
Segundo a OMS, os distúrbios
parafílicos são caracterizados por padrões persistentes e intensos de excitação
sexual atípica, manifestados por pensamentos sexuais, fantasias, impulsos ou
comportamentos, cujo foco envolve outros cuja idade ou status os torna pouco
dispostos ou incapazes de consentir e nos quais a pessoa agiu ou pelo qual ele
ou ela é marcadamente angustiado.
Este tipo de comportamento
não é considerado uma orientação sexual como a heterossexualidade,
homossexualidade e a bissexualidade.
Por
que tratar pedófilos?
Não existe cura para as
parafilias. Logo, a pedofilia também não tem cura. O que isso significa? Que os
pedófilos conviverão com o problema por toda a vida e que por isso é necessário
tratamento. Não há como mudar o interesse destas pessoas, mas com a terapia é
possível ajudá-los a controlar e não agir a partir de seus impulsos.
O tratamento pode ajudar que
não haja novas vítimas e para que aqueles que já cometeram algum crime não
voltem a fazê-lo.
Tratar pedófilos é um
desafio da medicina.
“Nenhum de nós é contra a
pena de prisão. Nós somos a favor. O que nós somos contra é a falta de
tratamento dentro e fora das penitenciárias”, diz Baltieri.
Para Antônio Serafim,
piscólogo que coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psiquiatria Forense e
Psicologia Jurídica (NUFOR ) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, outro problema é generalização do
termo.
“Como há confusão sobre o
termo pedofilia, as pessoas tendem a generalizar. Qualquer pessoa que pratica
abuso é chamado de pedófilo e, logo, criminoso. Esta situação impede que reais
pedófilos procurem ajuda”.
Abusador
X pedófilo
Nem todo abusador de criança
é pedófilo. Abusadores de crianças podem ser definidos por seus atos, pedófilos
são definidos por seus desejos. Um pedófilo que não procura ou recebe ajuda
pode vir a se tornar um abusador e, logo, criminoso.
Baltieri explica que de 20 a
30% dos abusadores de crianças tem o transtorno pedofílico. A maioria são
pessoas que se aproveitam de uma situação de poder ou de oportunidade para
cometer o abuso.
A classificação generalista
faz com que a Justiça acabe por colocar todos no mesmo grupo, em casos de
pedófilos que cometeram crimes. Porém, sem assistência médica, as chances de um
pedófilo abusador cometer um crime novamente aumentam.
"De nada vai adiantar
prender o portador de transtorno pedofílico junto com outros molestadores, se
não for ofertado o tratamento adequado. Um dos denominadores comuns entre os pedófilos
e os molestadores de criança é ter a ideia de que a criança gosta, de que a
criança é um ser sexual. A gente chama isso de distorção cognitiva",
explica Baltieri.
E complementa: "Em uma
penitenciária aonde a maioria tem este tipo de pensamento, deixá-los
compartilhar, é ele aprender que isso é normal, que é a sua visão de mundo. Uma
intervenção dentro e fora das penitenciárias é crucial".
Como
é feito o tratamento
No Ambulatório da Faculdade
de Medicina do ABC, 50 pedófilos recebem tratamento. Eles são atendidos de
graça por médicos e residentes da faculdade. E o tratamento é feito de forma
voluntária.
"A procura é enorme,
mas temos limite de agenda. Não tratamos ninguém involuntariamente ou sob
medida de segurança, não temos nenhum tipo de parceria com o setor
judiciário", diz Baltieri.
O tratamento envolve:
terapia em grupo
diário comportamental
presença da família
remédios quando necessário
O "coração" do
tratamento são as sessões de terapia em grupo, diz Baltieri.
“Se um paciente fala algo, é
muito mais fácil um outro portador da doença confrontar a mentira, a negação,
do que o terapeuta que não é pedófilo. Este tipo de postura é o coração de todo
tratamento ao redor do mundo”, explica.
Já no NUFOR, Serafim recebe
pedófilos que podem chegar por determinação judicial: "O tratamento
consiste inicialmente passar por uma avaliação psicológica e psiquiátrica para
verificar sintomas. A partir daí pode ser usado medicação e psicoterapia".
A medicação usada varia
entre antidepressivos e controladores de humor a terapia hormonal, usada em
casos mais raros em que o impulso sexual é muito forte.
Mudança
de foco
Baltieri explica que o
principal trabalho realizado é o que eles chamam de “redirecionamento
masturbatório”. A técnica visa mudar o “foco” da atração do pedófilo.
Segundo ele, o tratamento
tem três grandes objetivos, não são os únicos, mas os principais:
Controlar as fantasias e
comportamentos parafílicos
Evitar qualquer tipo de
reincidência
Melhorar a qualidade de vida
desta pessoa, seja sexual e/ou interrelacional
Com ajuda dos psicólogos e
psiquiatras, a pessoa aponta um adulto pela qual se sinta atraído: “Vamos
tentar fazer com que esta pessoa foque neste outro tipo de indivíduo. Ele vai
iniciar sua masturbação pensando nesta pessoa adulta, naturalmente sabemos que
as imagens infantis vão ser intrusivas -elas vão aparecer durante o ato
masturbatório. Quando aparecer, ele interrompe a masturbação e retorna
novamente neste processo (de mudar o foco)”.
Outra prática realizada com
os pacientes do ABCSex é o uso do diário comportamental, em que além de relatar
o dia a dia, os pacientes falam sobre suas fantasias.
“Ele vai escrevendo um
diário, que a gente chama de diário masturbatório, onde ele vai contando quando
se masturbou, se deu vontade, se as imagens apareceram ou não, se ele teve
vontade de olhar para crianças, se atração em relação às crianças tem reduzido
ou não, se ele tem feito uso de desenibidores como álcool e outras drogas...”
Quais
as dificuldades no tratamento?
A maioria dos pedófilos são
homens. Existem mulheres que tem o transtorno, mas são casos mais raros. Mesmo
assim, a pedofilia é altamente heterogênea. Ou seja: pode ser que a pessoa
tenha uma forma mais branda do distúrbio e apenas fantasie com crianças ou pode
ser que ela tenha um impulso maior e chegue a agir contra uma criança.
"De qualquer forma,
desde o mais leve até o mais complexo, o tratamento sempre é muito difícil. O
que talvez seja um dos motivos para não termos mais especialistas na
área", diz Baltieri.
Baltieri explica que por
conta da natureza do transtorno, os pacientes têm enorme dificuldade em se
abrir: "Elas vão aos poucos revelando quem são. A vida sexual é muito
íntima. Com a vida sexual dita normal já temos dificuldade para falar para qualquer
pessoa. Imagina alguém que tem uma atividade tão complicada quanto se excitar
com criança".
"O diagnóstico também
não é fácil, não é uma coisa que se faz em uma, às vezes nem em duas,
consultas. Às vezes se demora a fazer o diagnóstico pela dificuldade do
paciente em revelar as suas fantasias", explica.
Maioria
é casada
Segundo Baltieri, a maioria
dos portadores de pedofilia que procuram tratamento no ABCSex é casada, alguns
com filhos. Por isso, um dos objetivos do tratamento é mudar o foco de atração.
“Não é nem de longe um
objetivo a perda da libido, mesmo porque isso não funciona em nenhum país. A
libido não é apenas hormonal, envolve o aspecto cerebral, neuromoral,
cultural", diz.
"O objetivo é
reestruturar a vida deste indivíduo. Inclusive a vida sexual com a sua mulher
ou para que desenvolvam novos rituais de namoro com pessoas da mesma idade. É
reaprender este processo”, explica o psiquiatra.
Na maioria dos casos
atendidos no ambulatório do ABC Sex, as mulheres acabam por participar do
tratamento do companheiro, mesmo quando decidem não manter mais relações
sexuais com o indivíduo.
“Eu nunca vi uma separação
nestes quase 16 anos de ambulatório. As esposas tentam entender que é um problema,
elas percebem o sofrimento dos pacientes que nos procuram e tentam ajudar. É
lógico que no início existem as dúvidas, a raiva, o nojo. Se as próprias
esposas entendem, acompanham, por que os outros não?”, explica.
No futuro, o ambulatório
quer oferecer terapia de grupo também para as mulheres de pedófilos.
Qual
a causa da pedofilia?
Não existem muitos estudos
sobre as possíveis causas da pedofilia. Segundo Baltieri, o que a medicina sabe
sobre o transtorno pedofílico é que é uma doença do neuro desenvolvimento.
"Existem exames em
neuro-imagens que mostram alterações pré-frontais do cérebro e na região da
amígdala. A região pré-frontal é a região do cérebro responsável pelo controle
impulsivo e a amígdala é a responsável pela regulação das emoções. Isso
significa o quê? Que existem alterações, não de estrutura, mas da
funcionalidade", explica.
"Ou seja, o cérebro de
um portador do transtorno pedofílico funcionaria diferentemente diante de
estímulos do que o nosso cérebro, de quem não é portador"- Danilo
Baltieri, psiquiatra especializado no tratamento de pedófilos.
Estudos motram que a
genética pode contribuir para a incidência de pedofilia. O estudo mais famoso
sobre o tema foi realizado em 1984 e mostrou que filhos de pedófilos tem maior
chance de serem pedófilos também.
Segundo Baltieri, existe
também a evidência do abuso sexual na infância, mas não como um fator de
causalidade. O abuso sexual não é a causa, mas pode contribuir se tiver alguma
vulnerabilidade genética ou dificuldade relacional na pessoa.
"Fiz um estudo com
cerca de 208 agressores sexuais presos em uma penitenciária do estado de São
Paulo. Dentre os 111 que eram molestadores de criança, se tinham sofrido abuso
sexual na infância, tinham seis vezes mais chances de agredir crianças do que
mulheres adultas", diz.
Como
é feito no mundo
A dificuldade em oferecer
tratamento para pessoas com transtorno pedofílico é mundial. Na Alemanha, um
projeto que começou em Berlim tem dado certo, especialmente no trabalho de
prevenção de abusos.
O projeto Dunkfeld funciona
desde 2011 e se transformou em uma rede nacional conhecida pelo lema "não
ataque". Os pedófilos entram para o programa de forma anônima e pela lei
de confidencialidade entre pacientes e médicos não podem ser denunciados para a
polícia.
Nos EUA é diferente. Em
casos de crimes revelados pelo paciente ou se o médico detectar um alto
potencial para ação criminosa, ele deve reportar para as autoridades.
No tratamento alemão, a
terapia de grupo também é parte central. Nas sessões semanais, o grupo
compartilha sentimentos e aprende, dentre outras coisas, a lidar com situações
que possam ser estressantes para quem sofre do transtorno e a tentar
controlá-lo: festa infantis, reuniões familiares com a presença de crianças...
O programa alemão tem o apoio
de familiares de vítimas. A família de April Jones, um menina britânica de
cinco anos que foi assassinada em 2012, pediu que ajudem aos pedófilos que
procuram por ajuda.
"Se alguém disser ao
médico: 'Eu tenho esses sentimentos, posso ter ajuda?', seria melhor tentar
ajudá-los antes que arruínem a família de outra pessoa", disse Coral Jones
ao jornal inglês "The Guardian".
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