Dilma, ao contrário do que se
fez parecer, sabia muito bem sobre o que falava nos dois casos: o problema foi
de quem não quis entendê-la.
Depois da fala desconexa e sem
sentido de Jair Bolsonaro na tarde de sexta-feira (24/04), voltaram a circular
duas menções à ex-presidente Dilma Rousseff que fazem a festa dos bolsonaristas
em particular e dos antipetistas em geral: os discursos injustamente infamados
da "saudação à mandioca" e do "estocar vento".
Dilma, ao contrário do que se
fez parecer, sabia muito bem sobre o que falava nos dois casos. O problema foi
de quem não quis entendê-la, na imprensa e no dia a dia.
Comecemos pela saudação à
mandioca. Dilma usou a expressão em junho de 2015, na abertura dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, diante de
representações de povos originários de 23 países. “Nenhuma civilização nasceu
sem ter acesso a uma forma básica de alimentação e aqui nós temos uma, como
também os índios e os indígenas americanos têm a deles. Temos a mandioca”,
antes de completar: “Hoje, eu tô saudando a mandioca, uma das maiores conquistas do
Brasil”.
A mandioca foi e continua
sendo até hoje o principal alimento das populações indígenas brasileiras,
sobretudo as do norte do país – onde, aliás, também é o alimento principal da
população não indígena. Ao saudar a mandioca, naquele contexto, Dilma saudava a
vida, mais ou menos como a Igreja de Roma saúda o pão e o vinho em toda missa.
No caso do "estocar
vento", Dilma fazia uma metáfora em outubro de 2015, numa coletiva de
imprensa na ONU, justamente sobre a dificuldade e o desafio que é encontrar
meios de fazer a energia eólica ser armazenada para uso não imediato. Dilma
falava sobre uma questão planetária, diretamente relacionada à questão da
emissão de dióxido de carbono. E falava de uma posição privilegiada, pois tinha
muito o que dizer sobre um tema que mobiliza a comunidade científica ligada à questão
energética.
Ex-secretária de energia do Rio
Grande do Sul e ex-ministra das Minas e Energia do governo Lula, Dilma não
criou, mas aperfeiçoou absurdamente o jeito brasileiro de fazer isso: a
integração em nível nacional de diferentes formas de produção de energia
elétrica. Falando linguisticamente, Dilma (utilizando de resto uma expressão
usada no setor elétrico) deu uma conotação positiva àquilo que o senso comum
sabe ser coisa impossível, ou seja, estocar vento – vento estocado é vento
parado, portanto não é mais vento.
A energia eólica vem crescendo
rapidamente como matriz energética no mundo. Em 2018, já era a segunda maior
fonte de energia no Brasil (9,2%), ultrapassando a biomassa (sobretudo bagaço
de cana, 9%), atrás da hidrelétrica (63,7%). Em 2015, a produção eólica tinha
crescido nove vezes em relação a 2010, último ano antes de Dilma.
Ocorre que a produção eólica
não pode, “naturalmente”, ser estocada. Mas, ao ligar de forma nacional as
redes de produção de energia de diferentes matrizes (eólica, gás, óleo, nuclear
e hidrelétrica), o Brasil pode fechar as comportas das usinas hidrelétricas,
acumulando água, enquanto venta muito nas regiões (sobretudo o Nordeste) que
produz grande quantidade de energia eólica. As usinas que acumulam água, na
prática, estocam vento, como disse Dilma.
O sistema montado pelo Estado
brasileiro, unindo capital privado e estatal, na prática já armazenava vento
quando ela disse a frase, mas Dilma não estava satisfeita: queria
mais. Ex-ministra de Minas e Energia, graças ao trabalho da equipe de
Dilma não tivemos mais grandes apagões depois que se iniciou o governo Lula, em
2003. Como disse, ela não inventou isso, mas ela completou e aprimorou o
serviço.
Outro detalhe importante dos
anos Lula e Dilma, que pouca gente sabe que aconteceu, foi o fato de o Brasil
ter recuperado antigas usinas hidrelétricas que estavam para ser desativadas,
como é o caso da Usina Laranja Doce, de Martinópolis, construída em
1928 e que passou por uma reforma em 2012. Isso ampliou fortemente a capacidade
de geração de pequenas usinas, em vez de desativá-las.
Nos Estados Unidos, sem o
planejamento federal da questão energética, a desativação de várias usinas
hidrelétricas nos anos 2010 gerou grandes desequilíbrios ambientais, porque os
rios voltavam a correr pelos antigos leitos, o que já não servia à flora, fauna
e agricultura atuais das regiões que cortavam. Isso, no Brasil, não ocorreu.