segunda-feira, 27 de abril de 2020

Sobre saudar a mandioca e estocar vento: Dilma estava certa


Dilma, ao contrário do que se fez parecer, sabia muito bem sobre o que falava nos dois casos: o problema foi de quem não quis entendê-la.


Depois da fala desconexa e sem sentido de Jair Bolsonaro na tarde de sexta-feira (24/04), voltaram a circular duas menções à ex-presidente Dilma Rousseff que fazem a festa dos bolsonaristas em particular e dos antipetistas em geral: os discursos injustamente infamados da "saudação à mandioca" e do "estocar vento".

Dilma, ao contrário do que se fez parecer, sabia muito bem sobre o que falava nos dois casos. O problema foi de quem não quis entendê-la, na imprensa e no dia a dia.

Comecemos pela saudação à mandioca. Dilma usou a expressão em junho de 2015, na abertura dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, diante de representações de povos originários de 23 países. “Nenhuma civilização nasceu sem ter acesso a uma forma básica de alimentação e aqui nós temos uma, como também os índios e os indígenas americanos têm a deles. Temos a mandioca”, antes de completar: “Hoje, eu tô saudando a mandioca, uma das maiores conquistas do Brasil”.

A mandioca foi e continua sendo até hoje o principal alimento das populações indígenas brasileiras, sobretudo as do norte do país – onde, aliás, também é o alimento principal da população não indígena. Ao saudar a mandioca, naquele contexto, Dilma saudava a vida, mais ou menos como a Igreja de Roma saúda o pão e o vinho em toda missa.

No caso do "estocar vento", Dilma fazia uma metáfora em outubro de 2015, numa coletiva de imprensa na ONU, justamente sobre a dificuldade e o desafio que é encontrar meios de fazer a energia eólica ser armazenada para uso não imediato. Dilma falava sobre uma questão planetária, diretamente relacionada à questão da emissão de dióxido de carbono. E falava de uma posição privilegiada, pois tinha muito o que dizer sobre um tema que mobiliza a comunidade científica ligada à questão energética.

Ex-secretária de energia do Rio Grande do Sul e ex-ministra das Minas e Energia do governo Lula, Dilma não criou, mas aperfeiçoou absurdamente o jeito brasileiro de fazer isso: a integração em nível nacional de diferentes formas de produção de energia elétrica. Falando linguisticamente, Dilma (utilizando de resto uma expressão usada no setor elétrico) deu uma conotação positiva àquilo que o senso comum sabe ser coisa impossível, ou seja, estocar vento – vento estocado é vento parado, portanto não é mais vento.

A energia eólica vem crescendo rapidamente como matriz energética no mundo. Em 2018, já era a segunda maior fonte de energia no Brasil (9,2%), ultrapassando a biomassa (sobretudo bagaço de cana, 9%), atrás da hidrelétrica (63,7%). Em 2015, a produção eólica tinha crescido nove vezes em relação a 2010, último ano antes de Dilma.

Ocorre que a produção eólica não pode, “naturalmente”, ser estocada. Mas, ao ligar de forma nacional as redes de produção de energia de diferentes matrizes (eólica, gás, óleo, nuclear e hidrelétrica), o Brasil pode fechar as comportas das usinas hidrelétricas, acumulando água, enquanto venta muito nas regiões (sobretudo o Nordeste) que produz grande quantidade de energia eólica. As usinas que acumulam água, na prática, estocam vento, como disse Dilma.

O sistema montado pelo Estado brasileiro, unindo capital privado e estatal, na prática já armazenava vento quando ela disse a frase, mas Dilma não estava satisfeita: queria mais. Ex-ministra de Minas e Energia, graças ao trabalho da equipe de Dilma não tivemos mais grandes apagões depois que se iniciou o governo Lula, em 2003. Como disse, ela não inventou isso, mas ela completou e aprimorou o serviço.

Outro detalhe importante dos anos Lula e Dilma, que pouca gente sabe que aconteceu, foi o fato de o Brasil ter recuperado antigas usinas hidrelétricas que estavam para ser desativadas, como é o caso da Usina Laranja Doce, de Martinópolis, construída em 1928 e que passou por uma reforma em 2012. Isso ampliou fortemente a capacidade de geração de pequenas usinas, em vez de desativá-las.

Nos Estados Unidos, sem o planejamento federal da questão energética, a desativação de várias usinas hidrelétricas nos anos 2010 gerou grandes desequilíbrios ambientais, porque os rios voltavam a correr pelos antigos leitos, o que já não servia à flora, fauna e agricultura atuais das regiões que cortavam. Isso, no Brasil, não ocorreu.


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